Reflexões sobre a Acentuação da Precarização do Trabalho no Amapá em face da Pandemia

No contexto dos direitos humanos, o Fundamento da Dignidade postula a centralidade da pessoa nas regras jurídicas. Isso posto, os direitos humanos mais básicos como a proteção contra o tratamento degradante ou a garantia de condições materiais mínimas de sobrevivência (Ramos, 2019) devem ser fonte de constante construção para a composição dos Direitos Humanos. Nesse sentido, os direitos de segunda dimensão, formatados pelo relevo da igualdade e traduzidos em direitos sociais, culturais e econômicos marcam a passagem do Estado Liberal para o Estado Social e prescrevem o direito ao trabalho. Destarte, há direitos trabalhistas internacionalmente reconhecidos e previstos nos art. 21 e 24 da Declaração Universal dos Direitos Humanos (interpretação autorizada da Carta das Nações Unidas), assim também enfatizados nos arts. 6 e 7 do Pacto Internacional de Direitos Sociais Econômicos e Culturais (promulgado no direito brasileiro pelo decreto 591/92), no art. 5 da Convenção Internacional sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Racial (promulgada internamente pelo decreto 65.810/68) e no art. 11 da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação Contra a Mulher (promulgada pelo decreto 4377/02). O ponto axial dessas premissas internacionais é que as funções laborais devem ser exercidas sob a égide do princípio da dignidade humana.

Do ponto de vista econômico, infere-se que a existência de direitos relativos ao trabalho não se assenta unicamente nos critérios do altruísmo humano. Nesse prisma, Pinho e Vasconcellos (2006) descrevem o funcionamento de uma economia de mercado em termos de fluxos básicos e completos. Em primeiro plano, os fluxos básicos, minudenciado em real e monetário da economia, ponderam que as forças de oferta e demanda entre empresas e famílias geram circulação de moeda e garantem o pleno funcionamento econômico de uma sociedade. Com efeito, conforme os autores, os fluxos completos incorporam o setor público, que, em consonância com Moreira (2019) equilibra os dois extremos pela regulação da coleta e da redistribuição de renda.

Na mesma face, o enrijecimento das premissas liberais, culminado na crise de 1929 e responsável por mais de 13 milhões de desempregados (Sandroni, 1999), provocou o estabelecimento do Estado de Bem-Estar Social, mais conhecido após a implantação do New Deal pelo presidente americano Franklin Delano Roosevelt em 1933. Essas medidas visavam assegurar garantias sociais mínimas e contrapunham, segundo Chelala (2020), o modelo ortodoxo econômico que não extraia justificativa para a distribuição de renda na teoria econômica. Outrossim, Moreira (2009) aduz que a taxação americana para os mais ricos no pós guerra ultrapassou os 90%. Isso significa que boa parte do excedente dos cidadãos norte-americanos era entregue ao governo para retroalimentação do setor produtivo. Como resultado, ao passo em que a desigualdade diminuía, esses foram os anos em que os Estados Unidos se tornaram a nação economicamente mais influente do mundo.

Não obstante isso, Souza (2021) relata que o capitalismo mundial, especialmente após o início da década de 70, motivado pela queda nos lucros após crise estrutural pelo excesso de gasto estatal, especialmente para o financiamento dos esforços na Guerra Fria, esgota o modelo de Bem-Estar implementado no pós guerra e inicia o constructo favorável ao grande capital. Sob esse viés, formatam-se discursos de diminuição dos investimentos sociais que incidem no enfraquecimento das proteções sociais e, por conseguinte, na precarização das relações trabalhistas.

Demais, segundo Moreira (2019), nos Estados Unidos, as consequências dessas políticas fomentadoras da desigualdade resultaram no aumento da dívida pública norte americana de 31% para 62% do PIB, o que alimentou a ilusão do pensamento de diminuição do Estado e a consequente lógica de precarização das relações de trabalho como ferramentas de solução de um problema para o qual essas eram as causas. Esse cenário de retroalimentação do favorecimento do capital culminou na crise de 2008, conhecida como crise dos subprimes, no enfraquecimento do modelo neoliberal e no fortalecimento do proscrito modelo keynesiano (Chelala, 2020).

Enquanto isso, o cenário econômico brasileiro seguiu na contramão dos fatos. Moreira (2019) aponta que após 2014 o Brasil foi atingido por três movimentos harmonicamente executados. Primeiro, os valores das commodities, base das exportações, sofreram uma queda de cerca de 50% no mercado internacional. Segundo, a deflagração da operação Lava Jato não poupou do abalo as principais empresas brasileiras, assim como toda a cadeia produtiva que delas derivavam. Consequentemente, mais de 170 bilhões de investimentos estrangeiros foram perdidos. Terceiro, o outrora ministro da Fazenda Joaquim Levy iniciou um plano de ajustes fiscais que promovia, sobremaneira, a redução dos investimentos sociais e o início do movimento econômico que o panorama internacional tomara como obsoleto. Decerto, emanou desse posicionamento interno em favor do grande capital a modernização trabalhista materializada na Lei 13467/17, interpretada por Lara e Hillesheim (2020) como essencialmente regressiva.

Ainda, formatado o caos econômico, o ano de 2020 acrescenta o cenário pandêmico em face da Coronavirus Disease 2019 (Covid-19). Vale lembrar que o governo Bolsonaro, inicialmente, como medida afirmativa e emblemática da continuidade dos padrões neoliberais, extinguiu o Ministério do Trabalho e submeteu a pasta ao comando do Ministério da Economia, chefiado pelo então ministro Paulo Guedes. Ato contínuo, como resposta às variáveis econômicas da pandemia, editou-se a Medida Provisória 927, que previa a suspensão dos contratos de trabalho por quatro meses sem pagamento de salários. De outra face, a reação social a essa medida extrema e insensível provocou a elaboração da Medida Provisória 936, denominada Programa Emergencial de Manutenção de Emprego e Renda (convertida na Lei 14020 e prorrogada pelo Decreto 10422), que percebia a redução da jornada de trabalho, com correspondência na redução de salários e na compensação de acordo com o valor do seguro desemprego (Lara e Hillesheim, 2020). A MP 936 também positivou a prevalência dos acordos individuais sobre o legislado, o que ajudou a amparar a precarização trabalhista.

Nesse ínterim, consoante ao Índice de Magnitude do Estado (IME) proposto por Chelala (2020), em 2019, o Amapá foi o segundo Estado brasileiro de maior presença estatal na economia. Todavia, reforça o pesquisador, essa participação não decorre do gigantismo da máquina pública, mas da incipiência da iniciativa privada local. De acordo com essa perspectiva, 46,2% do PIB amapaense tem origem na participação do setor público. Em relação à força de trabalho ocupada, o setor público abriga 23,5% do total e 50,1% da força formal. Isso sugere que cerca de 60% da força de trabalho no Amapá se concentra na informalidade. No mesmo tom, o pesquisador relata que esses 23,5% da força de trabalho global concentram 67,1% da massa salarial global, o que corresponde a 25% do PIB. Isso permite deduzir que 32,9% da massa salarial é dividida entre os 76,5% de trabalhadores restantes (cerca de 60% de trabalhadores informais e o restante dos empregados formais da iniciativa privada). O diminuto peso da iniciativa privada também é registrado tanto pela participação do ICMS na arrecadação (cerca de 20%), quanto pela distribuição do número de estabelecimentos comerciais pela população do Estado. Segundo esse índice, o Amapá confere 92 habitantes por unidade empresarial, o segundo pior índice do Brasil. Dessa maneira, a dinâmica econômica do Estado do Amapá é um fator que, por si só, contribui para a precarização do trabalho.

Finalmente, ratificando o cenário exposto, segundo relatório de 2020 da Secretaria de Estado do Trabalho e Empreendedorismo (SETE), apenas 3,56% dos encaminhamentos para o trabalho formal foram bem sucedidos. Os fatores elencados para o baixo índice de sucesso estão a ínfima oferta de vagas e o alto grau de exigência dos empregadores, o que revela o desequilíbrio entre a oferta e a demanda por mão de obra e a sua consequente tendência à desvalorização. Por outra via, a Central do Trabalhador autônomo consignou 48,14% de preenchimento de vagas, o correspondeu a 54,54% dos encaminhamentos bem sucedidos, o que também substancia o caráter precarizador do trabalho do terreno econômico amapaense.

 

 

Referências

 

CHELALA, C. Economia do Estado do Amapá. São Paulo: Editora: Clube dos Autores, 2020.

 

LARA, Ricardo; HILLESHEIM, Jaime. Modernização trabalhista em contexto de crise econômica, política e sanitária. 2020.

 

MOREIRA. Eduardo. Desigualdade & caminhos para uma sociedade mais justa. Rio de Janeiro. Editora: Civilização Brasileira, 2019.

 

PINHO, D. B.; VASCONCELLOS, M. A. S. Manual de economia. 5. ed. São Paulo, 2006

 

RAMOS, André de Carvalho. Curso de Direitos Humanos. São Paulo: Editora Saraiva, 2019.

 

SANDRONI, Paulo. Novíssimo Dicionário de Economia. São Paulo: Editora Best Seller, 1999.

 

SOUZA, Diego O. As dimensões da precarização do trabalho em face da pandemia de Covid-19. Trabalho, Educação e Saúde, v. 19, 2021, e00311143. DOI: 10.1590/1981-7746-sol00311


Acadêmico de Direito – UNIFAP



Ciência da Computação – UFPA



Especialista em Redes de


Computadores



Especialista em Docência e Gestão em E


Educação à Distância



Certificado ITIL, COBIT, ISO 27002



Analista Judiciário/Apoio Especializado –


Tecnologia da Informação – TRT8